08 dezembro, 2008

Minha mente era um labirinto, tentador ou aterrorizante, conforme o meu humor.

Postei a pouco tempo sobre o livro Firmin. Pois é, terminei-o. E resolvi compartilhar alguns trechos do livro. Vale a pena. É irônico, engraçado, triste, deprimente e verdadeiro à sua forma de ser uma fábula atual.

“Tivesse ele mantido um diário de dor, o único registro teria sido uma palavra: eu.” Philip Roth.

“Todas as famílias felizes se parecem, mas cada família infeliz é infeliz à sua maneira” Tolstoi.

Quando o telefone tocou, às três da manhã, Morris Monk soube, antes mesmo de tirar o fone do gancho, que a ligação era de uma mulher, e soube também de outra coisa: mulher significa problema.

Podemos não saber quando uma história começa, mas, às vezes, podemos dizer quando ela não pode ter começado, quando o rio ainda está em pleno movimento.

Curiousity_and_the_Rat_by_Meeliah Em épocas de fome brava, as crianças carentes comem terra. Se você está com muita fome, comerá qualquer coisa. O meu ato de mastigar e de engolir alguma coisa, mesmo que isso não alimente o corpo, alimenta os seus sonhos. E os sonhos de comida são como todos os demais – você pode viver deles até morrer.

Se fosse mais esperto, teria conseguido ver, nas terríveis dores abdominais que se seguiam ao exercício dessa paixão em sua manifestação infantil, um alerta, um augúrio dos infindáveis sofrimentos que, ao que parece, costumam andar ao lado do amor.

(…) Percebi, primeiro, que cada livro tinha um gosto diferente – doce, amargo, azedo, doce-amargo, rançoso, salgado, ácido. Notei também que cada sabor – e, com o passar do tempo e minha sensibilidade se tornando mais apurada, o saber de cada página, de cada frase e, ao fim, de cada palavra – trazia consigo uma carga de imagens, representações mentais de coisas sobre as quais eu não sabia nada (…).

Se existe uma coisa para a qual a formação literária contribui bastante é para proporcionar um aguçado senso de fatalidade.

Vivendo como fiz, todas as noites, nos misteriosos interstícios existentes entre o ato de ler e o de comer, descobri uma notável relação, uma espécie de harmonia preestabelecida, entre o sabor e a qualidade literária de um livro.

Interstício – Datação 1609 cf. FeioFesta Acepções: ■ substantivo masculino: 1- pequeno espaço entre as partes de um todo ou entre duas coisas contíguas (p.ex., entre moléculas, células, dedos etc.). 2 - fenda, greta Ex.: os i. De uma madeira. 3 - Rubrica: direito administrativo. Tempo mínimo de permanência de um funcionário, empregado etc. num posto, classe ou categoria da hierarquia funcional antes que possa ser promovido a posto, classe ou categoria de grau superior. 4- Rubrica: termo eclesiástico. Intervalo de tempo que a lei canônica estabelece como obrigatório entre a colação de uma ordem e a da ordem que lhe é imediatamente superior. 5 - Rubrica: termo jurídico. Intervalo de tempo antes do qual não se pode promover determinado ato. Etimologia: lat. interstitìum,ìi 'intervalo', do rad. de interstìtum, supn. de intersisto,stìti,stìtum,sistère 'parar no meio'

Não foi nada fácil encarar a estupidez vazia de uma vida comum, sem histórias, de maneira que muito cedo comecei a me alimentar com a ridícula idéia de que eu realmente possuía um Destino.

Observando em silencia a neblina branca que subia do vale, ouvindo o vento soprar por entre as cortinas de junco e as leves reverberações dos sinos dos templos distantes, sentíamo-nos “sozinhos com dez mil coisas”.

Loquaz à beira da charlatanice, estava, no entanto, condenado ao silêncio. Simplesmente porque não tinha voz. Todas as belas frases que voavam dentro da minha cabeça como borboletas estavam, na verdade, voando numa gaiola sem nunca poderem sair. Todas as lindas palavras que eu burilava e fazia soar no silêncio sufocante da minha cabeça eram tão inúteis quanto os milhares, talvez, milhões, de palavras que havia arranco dos livros e engolido, fragmentos desconexos de romances, peças teatrais, poemas épicos, diários íntimos e confissões escandalosas – todas sendo postas para fora em seguida, mudas, inúteis, desperdiçadas.

Podia pagar alguns centavos por um livro, dar meia-volta e sair com ele, para depois colocá-lo numa vitrine envidraçada e vendê-lo, no dia seguinte, por mil dólares. Quando os colecionadores vinham ver o que ele tinha a oferecer, vestiam luvas de algodão brancas antes de tocar em qualquer peça da vitrine. E alguns deles eram livros que Normam tinha simplesmente colocado na perua sem maiores cuidados poucos dias antes.

(...) imagino que toda essa emoção, toda essa ansiedade, eram muito mais do que o que meu pequenino corpo podia suportar, e naquelas noites, ao voltar para o meu empoeirado casebre (...) sentia-me terrivelmente deprimido. Um amor não correspondido já é algo muito ruim, mas um amor impossível de ser correspondido pode de verdade acabar com você. Passava dois dias sem comer. Lia Byron. Lia O Morro dos Ventos Uivantes. Deitava de costas. Olhava os dedos dos pés. Depois disso, me lançava ao trabalho com energia redobrada. (...) Mostrava grande capacidade de recuperação. Seguia em frente com meus assuntos. Externamente, eu era o mesmo afável personagem de sempre, e quem poderia saber que por dentro eu escondia um coração partido?

Para carregar o seu enorme desespero e que o olho que olhava para fora estava observando o vazio da vida humana e o tempo e o espaço infinitos, um vazio e um infinito que ele reunira em seu livro sob o nome de Grande Vazio.

Isso ajuda muito, nas noites solitárias, para olhar as estrelas e vê-las não como flocos de gelo ardente ao Grande Vazio, mas como as janelas iluminadas de casa. Infelizmente, ser um extraterrestre não acarreta nenhuma das vantagens práticas de ser rico ou famoso nem aumenta as probabilidades de você chegar até o fim do dia sem que nenhuma tragédia tenha despencado sobre a sua cabeça.

Ensopado, digamos assim, pela chuva da realidade -, sabia muito bem, dolorosamente, que nada poderia fazer na prática para ajudá-lo. Sentimentos de inadequação e a origem da depressão nos homens.

Nunca fui muito bom da cabeça, mas também não sou louco. Você pode erguer uma sobrancelha aqui, pode erguer as duas até, mas não tem como negar que uma coisa são os sonhos diurnos e os jogos mentais, e outra é estar realmente biruta.

O fantasma da Ópera (...) o fantasma, um grande gênio que vive oculto, sem sair à luz do dia por causa da sua grande feiúra, diz que o que ele mais queria no mundo era simplesmente passear à noite nos bulevares tendo nos braços uma linda mulher, como um burguês comum.

Ia em frente, mas dava para ver que seu coração já não batia ali.

É interessante como as ilusões não conhecem limites.

A vida é breve, mas sempre podemos aprender alguma coisa antes de cair fora. Uma das coisas que tenho observado é como os extremos se tocam. Um grande amor vira um grande ódio, uma paz amena se transforma numa guerra ruidosa, um tédio infinito gera uma imensa excitação. (...) Grandes intimidades geram grandes distanciamentos.

O amor traído. Tudo o que eu acreditara ser firme e resistente se esfarelava; e, no entanto, ao mesmo tempo, senti eu renascia.

Do jeito que as coisas se deram, eu não ouço nada quando termino uma linha, apenas o silêncio dos pensamentos caindo no buraco sem fundo da memória.

(...) e a vida que ele levava não tinha nada a ver com aquela que eu imaginava (...). Para começar, era algo muito mais solitário (...) tampouco do que eu mesmo havia experimentado diretamente, mas era bem mais solitário do que eu imaginava que escritores de verdade deviam ser.

(...) Isso sempre acontecia ao final de uma de suas fases tristes – períodos depressivos que iam e vinham com uma precisão de relógio – e sempre aparecia fazer muito bem a ele. (...) mas detestava as fases de tristeza. Todo o seu desespero enterrado, toda a tristeza e a desesperança encontradas em seus livros afloravam à superfície de sua vida, borbulhando nos seus olhos e cobrindo-lhe o rosto como um véu. Nesses períodos, ele apenas se sentava na poltrona e ficava olhando para a parede, praticamente catatônico. (...). E eu me sentia inútil também. Como você já deve ter adivinhado, eu também sou de uma personalidade bastante depressiva e conheço tudo sobre os dezessete tipos de desespero. – Dúvida: existem 17 tipos de desespero?

Eu aprendera com minhas leituras que você pode fazer coisas terríveis quando está entediado, coisas que podem deixá-lo deprimido. Na verdade, você as comete justamente para ficar deprimido, e assim, vencer o tédio.

Embora quase nunca ninguém batesse à sua porta (...) conhecia muitas pessoas que gostavam dele, e que o saudavam ao passar. (...) Se você vive sozinho, acho que ser meio louco ajuda, desde que não se exagere na dose. É, ao menos, a minha regra.

“(…) Aos poucos, ficava sabendo cada vez mais coisas sobre a sua vida, enquanto ele pode-se dizer com certeza, sabia cada vez menos da minha. Sendo eu tão naturalmente reservado, ele podia pensar o que quisesse a respeito da minha personalidade. Podia-me transformar no que bem entendesse, e logo ficou claro, não sem alguma dor, que, quando olhava para mim, o que ele via era, sobretudo um bichinho gracioso, meio palhaço e meio idiota, algo como um cachorro muito pequenininho com dentes de a_rat_a_rat_by_sector4 coelho. (Nt: a história é contada por um rato.) Não tinha a menor idéia de qual era a minha real personalidade, que eu era, na verdade, um cínico grosseiro, moderadamente viciado, um gênio melancólico, ou que tinha lido mais livros do que ele. Gostava de Jerry, mas temia que o que ele gostasse em mim não fosse eu mesmo, mas algo inventado pela sua imaginação. Eu sabia muito bem o que era se apaixonar por algo imaginário. E, no fundo, sempre soube, embora gostasse de fingir o contrário, que em nossas noites juntos, quando ele bebia e falava, estava falando apenas consigo mesmo. É uma risadinha marota o que estou vendo ai? Você pensa que me desmascarou, eu acho. Eu sei, eu sei muito bem o que eu mesmo já disse antes – que confessei, que já provei e, do meu jeito perverso, até mesmo me gabei do meu amor pelas frestas, da necessidade quase patológica de me esconder, da minha afeição pelas máscaras. Então, você pergunta, por que agora eu me queixo diante de uma oportunidade de me ocultar, da chance de ouro de permanecer encoberto por um disfarce impenetrável de um bichinho mansinho e fofo? Bem, eu vou lhe responder: a diferença entre vestir uma máscara, algo que sempre constitui uma chance de liberdade, e usá-la por que os outros lhe impõem, é a mesma diferença existente entre um refugio e uma prisão. (…)”

Acho que eles choravam por eles mesmos e seu passado perdido.

A vida me entediava, a literatura me entediava, até mesmo a morte me entediava.

Quando chove, diz o poema, o coração chora. (...) Percebi que os meus sonhos haviam mudado. Ficavam mais amenos e nostálgicos, com uma espécie de chama crepuscular em seus contornos, e já não vivia as emocionantes aventuras de antigamente. Sentia muita saudade do passado, mesmo de seus momentos mais terríveis. Nunca esqueço o que aconteceu comigo e quase nunca esqueço o que li, de modo que, àquela altura, eu já tinha acumulado uma quantidade incrível de lembranças. Minha mente era como um depósito gigantesco – dava para uma pessoa se perder dentro dele, sem noção de tempo, remexendo em caixas e caixotes, perambulando dias a fio com pó até os joelhos sem achar a saída. (...) Minha mente era um labirinto, tentador ou aterrorizante, conforme o meu humor.

Infestado é uma palavra interessante. Pessoas normais não infestam, nem poderiam infestar se quisessem. Ninguém infesta, a não ser as moscas, os ratos e os judeus. Quando você infesta, é porque está querendo confusão. Um dia, eu conversava com um homem num bar e ele me perguntou o que eu fazia para viver. Respondi: “Eu infesto.” Achei que estava fazendo uma ironia, mas o homem não captou a coisa.

Todo mundo têm dois trabalhos, um de noite e outro de dia, porque todo mundo têm dois lados, um obscuro e o outro à luz do dia. Você é assim, eles são assim, eu sou assim. Ninguém pode escapar disso. (...) Todos nós somos inimigos de nós mesmos.

Tinha passado a vida toda olhando para o mundo através de frestas e já estava farto disso. No entanto, se deixei aquela rachadura e a sua visão de um presente agonizante, foi apenas para encarar outra fresta, dessa vez no tempo: lembranças surgiam aos borbotões, e como um oceano.

Mas eu vou-me soltando deste resto que é tudo o que eu detesto. Solunaticamente em mim só. Por todas as suas culpas. Sim, me vou indo. Oh amargo fim! Eu me escapulirei antes que eles acordem. Eles não hão de ver. Nem saber. Nem sentir minha falta. E é velha e velha é triste e velha é triste”.

Trechos do livro Firmin – Sam Savage
Figuras do post: http://meeliah.deviantart.com/art/Curiousity-and-the-Rat-97459747

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